O manuscrito está pronto. Finalmente. Não há mais voltas a dar. Nas nossas mãos, não vai melhorar. Conseguimos superar a síndrome de impostor, aplicámos bem o feedback colhido dos nossos leitores beta, trabalhámos o distanciamento crítico, formatámos o manuscrito, está pronto.
E agora?
Agora chega um passo não menos decisivo que o anterior: escolher para onde o enviar. No texto que inspirou este, a Safaa Dib dá uma bela recomendação.
Conhecer o mercado é um aspecto importante. Atrevo-me a dizer tão importante quanto ter uma bagagem considerável de leituras para se poder ser um melhor escritor.
(…)
Assim, se a obra do Sr. Silva foi inspirada por Boris Vian, Mallarmé, Zweig, Malraux ou Faulkner, não precisa de recorrer a uma editora que publique apenas literatura romântica. Mas se tiver sido antes inspirada por Tolkien, Gene Wolfe, Jack Vance, Whittemore, Silverberg, Vandermeer então o Sr. Silva sabe que não serão editoras como, por exemplo, a Relógio de Água, Assírio & Alvim ou Cotovia a publicá-lo.
A Safaa fala apenas de editoras convencionais — também as prefiro e preferi, vou publicar Coisas Ruins numa chancela da Penguin Random House, dificilmente poderia ter escolhido uma editora com mais tradição e implantação no mercado — e tem uma opinião abertamente negativa de vanity presses. Vou tentar pôr de parte a minha própria opinião sobre formas alternativas de publicar e dar uma visão de conjunto de todas as possibilidades perante o novel autor. Antes disso, no entanto, vou fazer uma pequena lista de compras daquilo que uma editora convencional oferece aos seus autores, para percebermos aquilo de que estamos a abdicar quando optamos por outras vias:
Edição e preparação de manuscrito: a editora trabalha o texto diretamente com o autor. Caso seja necessário fazer alterações de fundo, ser-lhe-ão propostas. O ideal é fazer chegar à editora o manuscrito mais maduro possível, mas sempre sabendo que um bom editor vai ser o mais valioso aliado para o ultimar. Uma boa editora garantirá, também, a revisão tipográfica e gramatical do manuscrito, tipicamente realizada por um assistente editorial ou um revisor externo (idealmente ambos).
Paginação: um manuscrito segue para a gráfica já em formato PDF, criado por um designer especializado para garantir que as páginas estão consistentes entre si, que as linhas não estão demasiado largas nem apertadas, que não há linhas «penduradas» (e.g. apenas a primeira linha de um parágrafo no final de uma página), que a numeração das páginas não tem erro, etc. etc. Isto também inclui a formatação para ebook, apesar de esse mercado ser muito mais pequeno em Portugal.
Design de capa, materiais promocionais, entre outros: cada editora tem o seu método, mas tipicamente colaboram com designers internos ou freelancers, estúdios ou indivíduos independentes.
Burocracias, questões legais e contratuais: isto pode ir desde coisas tão simples como pedir ISBN e depósito legal para o livro como processos tão complexos como agenciar, gerir e negociar direitos de tradução para fora do país ou adaptações de obras que produzam esse interesse.
Produção: fazer tiragens com centenas ou milhares de livros custa muito dinheiro e as editoras assumem essa responsabilidade. A única editora em Portugal que tem produção própria é o Grupo Porto Editora, mas todas as outras têm acordos com gráficas que trabalham com o mesmo padrão de qualidade.
Distribuição e armazenamento: fazer chegar centenas ou milhares de livros às livrarias de todo o país também não é fácil, até porque é preciso primeiro «vender» o livro às mesmas. Uma boa editora tem essa capacidade. Note-se que isto significa coisas diferentes para editoras diferentes. Um autor inspirado em Vian e Mallarmé (para reproduzir os nomes que a Safaa citou) talvez não deva esperar que a sua editora procure os balcões do Continente ou do Auchan para os seus livros. Da mesma forma, alguém que faça ficção romântica comercial possivelmente não sonhará com os escaparates da Greta ou da Snob.
Agenciamento: esta parte pode ser feita por um agente profissional, mas eles escasseiam em Portugal e quem vai garantindo os mínimos são as editoras (bem-hajam). Um autor que queira estar, por exemplo, em festivais, ou que queira os seus livros enviados para prémios, vai beneficiar de uma editora com essa vocação. O mesmo para venda de direitos para o exterior.
Comunicação e marketing: não tenhamos ilusões, a participação do autor aqui será sempre importante — eu próprio não ando a fazer reels e tiktoks só por prazer, apesar de me estar a divertir bastante —, mas uma editora tem plataformas, redes de contactos, pontes com jornalistas, acesso a espaços e oportunidades que uma pessoa acabada de entrar no mercado não pode sequer imaginar. Uma boa editora terá inclusive profissionais 100% dedicados à assessoria de imprensa e marketing dos livros dos seus autores.
Tudo isto, numa editora convencional, está do lado da empresa. O autor não paga por estes serviços. Em compensação, o autor cede à editora os direitos sobre a sua obra. A editora é quem vai colocar e vender os livros, pagando ao autor uma percentagem do preço de capa. Essa percentagem varia, mas tipicamente está entre os 7 e os 12%, dependendo do volume de vendas.
Um autor que pretenda assumir todo este trabalho para si, pode optar pela autopublicação, vulgo edição de autor. Alguns amigos optaram por esta aventura, sempre sabendo o óbvio: dá muitíssimo trabalho e as vendas provavelmente ficarão circunscritas à rede pessoal do autor. Pode ser uma excelente opção para obras mais íntimas ou para livros muito específicos, criados para gerar buzz e colocar o nosso nome no falatório literário de cidades como Lisboa ou Porto.
Aviso à navegação: poucas pessoas têm a diversidade de talentos e a capacidade de trabalho para fazer tudo o que isso implica com sucesso. É uma aventura.
Existe ainda uma terceira opção, as chamadas vanity presses. A forma de as distinguir de uma editora tradicional é simples: vão cobrar ao autor. Claro que poderão maquilhar esta realidade com uma linguagem mais suave, chamando-lhe «modelo de partilha de custos», ou «parceria», ou outro eufemismo, mas é disso que se trata. As editoras que trabalham assim, em teoria, providenciam exatamente os mesmos serviços que uma editora convencional, simplesmente não assumem a totalidade dos custos.
Deixo ao meu caro leitor que interprete por si mesmo a probabilidade de estas editoras de facto apostarem no sucesso de vendas dos seus autores como uma editora convencional. Afinal, o leitor não é o seu verdadeiro cliente.
Amanhã deixo-vos umas palavras sobre como investigar o mercado e perceber que editoras ou grupos editoriais são opções realistas, assim como algumas dicas sobre como melhor fazer a abordagem.
PS: Uma boa editora, note-se, pode ser muito mais do que uma empresa com que o autor colabora. Qualquer autor vai desenvolver uma relação com o editor/a (pessoa, não instituição) com quem trabalhar e essa relação profissional pode definir todo um percurso literário. Não sei se a Diana Garrido está a ler isto (olá, Diana), mas considero-me um afortunado por estar a trabalhar com ela. Todo o processo tem sido extraordinariamente indolor, tem um ritmo de resposta pronta aos emails, por parvos e inseguros que sejam, como nenhum editor que já tenha conhecido, opiniões fortes e quase sempre com razão e uma forma muito direta e elegante de resolver questões que com outra pessoa talvez fossem difíceis. A PRH era a minha primeira opção para publicar Coisas Ruins e quando a Diana me fez uma proposta de publicação decidi aceitar na hora. Desde então, a minha opinião só melhorou.
Estou a adorar esta série, e a Diana Garrido é de facto incrível! (Como jornalista, já tive muitas vezes o prazer de conversar com ela/ouvi-la falar)